1. a verdadeira identidade do headcanon
uma análise rápida sobre fanfic, headcanon, e subtexto em Across the Spider-Verse (2023)
a fanfic (em português, “ficção de fã”) é um tipo de literatura de narrativa ficcional escrita por fãs, ou de uma obra (seja ela uma série, filme, RPG, video-game, etc.), ou até mesmo de celebridades
as possibilidades criativas na criação de uma fanfic são infinitas, e é justamente desse propósito que faz o ato da produção de uma fanfic algo tão interessante e divertido, afinal, quem não gostaria de imaginar, por exemplo, como seria uma realidade alternativa onde o Sans de Undertale na verdade é um humano?? ou imaginar como seria se os personagens de Supernatural e The Walking Dead se conhecessem?? ou melhor, imaginar a si mesma dentro do mundo de Crepúsculo?? e poder ser uma vampira??? talvez eu esteja pensando demais nisso???
de qualquer forma, as fanfics parecem ter surgido da forma que estamos familiarizados atualmente láa na década de 70, com fanzines de Star Trek. podemos até considerar os clubes de leitura de Sherlock Holmes lá no começo dos anos 1900 como uma espécie de fanfic também, já que era comum que escritores trocassem cartas com reescritas sobre o personagem
com o passar do tempo, como sabemos, as fanfics, além de serem homenagens, reimaginações e suposições de uma obra, sua história e personagens, sempre carregou consigo o conceito do headcanon
o headcanon nada mais é do que uma interpretação do fã em cima de algo considerado canônico, geralmente sobre personagens e seu passado, personalidade, ou relações. essa interpretação pode ser completamente contraditória ao cânone (aquilo que é oficial e confirmado na obra), como também representar algo sútil e que esteja presente no subtexto da obra, que poderia ser confirmado ou não
partindo dessa segunda possibilidade que começaram a surgir, principalmente, os headcanons de sexualidade de personagens, que caminhavam junto ao costume de identificar dois personagens do mesmo sexo como casais, como acontece com Sherlock Holmes e Watson, Hannibal Lecter e Will Graham, Kaiser e Joui, e até mesmo Bob Esponja e Lula Molusco
esses headcanons podem surgir, como acabei de dizer, a partir da interpretação a respeito da relação de dois ou mais personagens e de algo muitas vezes implícito na obra original — afinal, o que veio primeiro; o ovo (Sherlock Holmes é gay) ou a galinha (Sherlock e Watson são um casal)?
um outro exemplo é; qualquer um que assistiu Hannibal sabe que tem algo rolando entre o personagem homônimo e seu paciente, mesmo que não precisem mostrar os dois literalmente confessando seu amor proibido ao outro, mas ainda assim acaba por ser um shipp fanon (quando um headcanon acaba sendo interpretado por vários fãs), por justamente não termos essa confissão em tela e, por consequência, ser algo ainda não-canônico. o mesmo pode ser atribuído ao shipp Jayvik, dos pesonagens Jayce e Viktor de Arcane — transcender a matéria e tornar-se um só com alguém não é algo que simples amigos e colegas de trabalho costumam fazer… #minhaopiniao
por outro lado, interpretar a sexualidade de um personagem pode surgir também pela simples vontade do fã de se sentir representado, ou simplesmente por achar que seria legal, fofo ou qualquer argumento — todos são válidos pra criar um headcanon, contanto que não machuque ninguém. ainda assim, criar um headcanon, por mais inocente que seja, parece irritar algumas pessoas que, por algum motivo, não suportam ver seu personagem favorito ou sua obra favorita ser “destruída pela agenda woke” ou sei lá que argumento estúpido estão usando agora
é também válido a interpretação do gênero de um personagem, mesmo que nada que indique isso esteja presente no subtexto da obra ou nela diretamente, como acontece muitas vezes na internet, onde artistas colocam marcas de mastectomia, por exemplo, ao fazer uma fanart de um personagem que gostam. esses detalhes surgem como uma forma de dar mais visibilidade ao movimento trans, como uma homenagem, ou só porque às vezes quem desenhou achou que seria legal — normalmente por também ser uma pessoa trans e gostar de um personagem, dando à ele algo a se identificar, abrindo margem pra outras pessoas trans também se identificarem e se sentirem acolhidas de certa forma
quando os primeiros trailers de Homem-Aranha Através do Aranhaverso (2023) começaram a surgir, muitas pessoas notaram em um dos frames que, no quarto de Gwen, acima de sua porta, era possível ver uma bandeira trans com a escrita “Protect Trans Kids” (“Proteja Crianças Trans”)
obviamente, isso acabou causando um enorme burburinho na internet, e uma grande questão surgiu e começou a ser discutida: Gwen Stacy é trans?
primeiramente, muitos começaram a contra argumentar essa hipótese, dizendo que a bandeira significa apenas que Gwen é uma aliada (um tanto curioso, afinal eu mesma nunca vi um aliado ter uma bandeira trans em seu quarto… mas ok, justo, eu acho?). outro argumento seria que, na verdade, o Peter Parker da Terra-65 — o universo desta Gwen — que é trans, e a bandeira seria apenas uma forma de homenageá-lo (de qualquer forma… pq os DOIS não podem ser trans??)
além de indícios no background, como a bandeira e também um pin das cores trans que seu pai carrega no uniforme de policial, outros pontos que reforçam essa “teoria” parte da sua própria jornada pessoal no filme, que inicia com uma dualidade dela entre sua vida normal e sua vida como super-heróina, e principalmente no fato de seu pai, George, odiar a ‘Ghost Spider’ — seu alter ego de herói —, enquanto ama sua filha, sem saber que, na verdade, são a mesma pessoa
no início do filme, temos o primeiro confronto direto dos dois. George finalmente encurrala a Ghost Spider, e deseja prendê-la, enquanto aponta a arma para ela, ameaçando-a. com medo, Gwen, à força, retira sua máscara e revela sua identidade secreta ao seu pai.
“Can you just not be a cop for a second and be my dad here and listen to me?”
nesse momento, Gwen está completamente exposta e envergonhada, e depende da reação de seu pai, aquele que deveria amá-la não importa a situação, para seguir com sua vida, sua vida de verdade, e ser quem ela é. sem que ela pudesse se explicar, seu pai continua firme na sua decisão de prendê-la, e todo esse momento é completamente pesado e pessoal, especialmente quando visto pelo subtexto da personagem ser uma garota trans, e aquela cena ser sobre ela saindo do armário
“… are you really this afraid of me?”
no fim do filme, quando ela volta para casa e descobre que seu pai deixou de ser policial justamente por escolher ela acima de, principalmente, seus princípios políticos, é ainda mais especial, e conversa ainda mais com todo o subtexto da jornada de aceitação da Gwen como queer durante o filme. George finalmente aceita sua filha, e não é à toa que toda essa cena de aceitação e desabafo é composta por uma linda mescla das cores azul, rosa e branco — as cores da bandeira trans — no background, que somente adicionam ao significado daquela cena como um todo
“But you have to understand, this mask… is my badge, and I’m trying to be good too. I was trying so hard to wear this thing the way you would want, and I didn’t… I didn’t”
é possível analisar todo o filme, não só pelo ponto de vista de Gwen, como um filme que retrata vivências e dificuldades de uma pessoa LGBTQIA+ e a opressão vivida por ela. o próprio conceito do “evento canônico” e a escolha do Miles de se rebelar à um sistema dito como “perfeito” e “imutável”, ou ser apontado como uma “anomalia” ou “erro” pelo Miguel, é um reflexo disso, além de um comentário sobre xenofobia e racismo
“Wherever you go from here, you have to promise to take her of that little boy for me. Make sure he never forgets where he came from. And he never doubts that he’s loved. And never let anyone tell him that he doesn’t belong here”
nesses pontos, o papel do headcanon é muito mais do que simplesmente inventar algo em cima de uma obra pelo simples prazer de fazê-lo, mas também em interpretar o que ela realmente quer dizer, mas talvez não possa completamente
e o nosso papel é descobrir a identidade secreta dessas obras — e desses personagens —, e compreender e aceitar quem eles realmente são, mesmo que pessoas ignorantes tentem dizer o contrário
e proteja crianças trans <3